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31 de out. de 2011

do útero que me pariu


Tentei escrever, mas não consegui. Fiquei assustada com as palavras que não eram cuspidas de minha boca, nem riscadas no papel. Eu sempre quis compor poemas. Mas sei que não sou de natureza organizada para conceber letras bem alinhadas. Meus pensamentos são muito soltos para serem formatados em belos versos. Uma desculpa que inventei agora, para justificar a grafia que não voa tão alto, tão rápida quanto meus sentimentos. Sempre perdidos, bem longe do chão. Distantes de mim.

Sou filha parida de muitos úteros, nenhuma casa, nada é meu. Poderia ter tudo que tocasse. Mas tudo que preciso levo comigo, guardado em mim. Não quero mais nada além disso. Não quero ser tocada.

(...)



Mamãe me criou com laços de fita no cabelo e belas canções de ninar. Velava meu sono em um quarto enfeitado com bonecas de porcelana e ursos de pelúcia. Eu passava os dias ensaiando poesias, hábito o qual me dediquei mesmo antes de aprender a escrever corretamente. Ela aplaudia meus rascunhos bordados com letras infantis. Não levo em minha memória recordações de tardes em que brincava correndo pela rua, sujando o vestido de seda limpo e bem ornamentado. Eu era feliz assim, sozinha em meu canto com papéis de carta e canetas coloridas.

Mas não sou nada disso. Cresci, não sei quem sou.

(...)

Quando fui cuspida à vida não chorei. Cansada, aceitei com resignação a incumbência de suportar minha alma presa nesse embrulho de carne. Passaria meus dias tentando esquecer a sensação de ser livre. Quase consegui.


Meu castigo por ousar pensar em renegar o útero que me acolheu seria um só: eu jamais conseguiria descrever o longe que meus pensamentos pudessem atingir. Eles sou eu, mas estão muito fora de mim. Não os alcanço. Viro do lado avesso, vasculho tudo dentro de mim. Nada adianta. Eles estão lá fora, não sei se encontro mais alguma coisa aqui dentro.

Quando fui cuspida à vida não chorei. Mesmo após o médico dar incessantes batidas naquela aglomeração de carne que agora era minha. “Já nasceu morta”, sentenciou.

(...)

Quando eu tinha quatro anos, tentei explicar à mamãe o que eu sentia. Ela não entendeu. Ninguém entendeu. Eu ainda não sabia escrever. Peguei a caneta e enfiei em minha vagina. E fecundei ali todas as idiossincrasias que ensaiavam se manifestar em mim. Meu útero latejava. Precisava de mais líquido.

E da fecundação que fiz em mim, mais uma vez nasci. Eu saí de mim mesma, gemendo e gozando uma vida que ainda não conhecia. Depois nasci muitas e muitas outras vezes, parida de outros úteros, alguns muito diferentes do meu. Nasci em cada lágrima caída, em cada sangue derramado, em cada desejo saciado, em cada amor que não senti.

Mas não escrevi um único verso sequer, sobre nada disso.

(...)

Sou filha... de uniões incoerentes, conflitantes, contraditórias. Sou fruto do meu amor e do meu não-amor por todo esse efêmero que é a vida. Sou concebida de novo e mais uma vez a cada instante em que me encontro, e me perco, e me abandono. Sou refém dos sentimentos que não sinto, que não tenho.

Sou uma poeta que não sabe escrever.

23 de out. de 2011

borrão






(...) e procurou saber em que momento as curvas de seu caminho se afastaram tanto de quem ela foi tão próxima, durante tanto tempo. E fizeram com que ela olhasse com desprezo para quem um dia se viu refletida. E fizeram com que aquele que era capaz de enxergar em sua alma supostas verdades que ela sequer sabia admitir para ela mesma, hoje fosse incapaz de entender o que ela dizia claramente, com todas as letras.

Quem havia mudado tanto? Ela ou ele? Ou foi algo que aconteceu aos dois ao mesmo tempo? Caminharam por lados opostos sem se darem conta, sem dizerem ao menos um até logo, até que ela percebesse sozinha o quanto estavam distantes. Distância que o transformou apenas em um ponto embaçado às suas vistas. Sequer poderia ser referência para alguma coisa, de tão pequeno e disforme. Agora apenas um borrão de proporções medíocres que não mais a interessa. Que às vezes mesmo sequer suporta a presença, tamanhas são as diferenças.

E não entende como ele não conseguiu perceber isso ainda. Ou finge que não percebe. Não consegue compreender como foi que em algum momento de sua vida pôde achar que sua redenção estaria ali: redenção de suas confusões mentais, de sua essência perturbada que teria nele sempre um refúgio.

Como pode o ser humano mudar tanto assim em tão pouco tempo? E se atormentar com dúvidas que nunca imaginou que poderiam existir. Ela saiu tanto de si e por isso mudou tanto, que já não era mais ela. Ela buscou se livrar da amarras que a prendiam. Mas não consegue se livrar de vez dos rastros de suas antigas pegadas.

Ainda não sabe se é capaz de sentir algum tipo de dor por ter se distanciado tanto do não-lugar para onde deveria ir. Talvez viva em constante torpor. Ainda não se deu conta do choque que é ser totalmente sozinha. O que ela sente agora - por incrível que pareça - é alívio, como se tivesse se livrado de um peso. Talvez se sinta em paz, por saber que ninguém mais é capaz de entender o que esconde em seu coração.






21 de out. de 2011

brincadeiras infantis





esconderijo
Sou uma menina que gosta de brincar de pique-esconde. Mesmo sabendo que não posso me esconder de mim mesma. Eu me divido em vários pedacinhos que se perdem. Separados, não fazem sentido. Juntos, sou eu.

uma não-infância
Você se divide em tormentos que sequer aceita e pede que eu te entenda. Você não sabe brincar e leva a sério todos os esconderijos que inventa. Você está perdido demais para admitir o quanto se perturba com brincadeiras que poderiam ser inocentes. E tenta se apoiar em minha confusão.

casinha pão de mel
João e Maria eram duas crianças que se descobriam todos os dias. E resolveram ficar nus, para desvendar os mistérios do corpo um do outro. Maria se despiu demais, mas não mostrou nem metade do que queria. João tirou pouco da roupa e foi embora sem explicação. Mas levou um saco de doces, com pirulitos, balas, confeitos coloridos. E foi jogando a cada passo, um pouquinho pelo chão. Assim Maria sempre saberia onde encontrar João.

perdição
Sou uma mulher que não tem medo do que sente. Sou uma mulher que não admite covardia. Sou uma mulher que não suporta o abandono. Sou uma mulher que não aprendeu (nem quer) a perdoar.

pique-esconde pique-esconde pique-esconde pique-esconde pique-esconde pique-esconde pique-esconde ....

19 de out. de 2011

Apenas hoje


É dito que a arte nunca vem da felicidade, algo que sempre concordei. Quando escrevo estou triste, e com minhas palavras embaralhadas tento questionar o porquê dessa tristeza. Mas hoje, só hoje, quero achar essa afirmação injusta. E por sentir uma paz em mim que sequer sei explicar, eu preciso me expressar e contradizer o que sempre acreditei. A dor não é - nem pode ser - para todos os dias.

Quero deixar registrado nessas linhas o quanto gosto de fechar os olhos e respirar fundo quando sinto uma brisa beijar meu rosto e me abraçar com carinho.

E contar que amo contemplar o mar em um final de tarde ensolarado, enquanto sinto o cheiro de sal e me perco em meus sonhos.

Preciso dizer o quanto me faz bem sorrir bem alto, pelos motivos mais bobos que me alegram de maneira que nem entendo.

E que ao chorar eu limpo minha alma e alivio meu espírito, então peço que deixem minhas lágrimas rolarem à vontade.

Porque não importa minha alegria ou tristeza, quando estou sozinha em minha cama, numa tarde fria e chuvosa, durante essas horas eu sei o que é estar em paz. Quando o céu chora é porque preciso lavar meu coração.

...

Eu quero viver muito. Mas de tanto procurar um rumo, cansei. E percebi que não há caminho pré-determinado a ser traçado por mim. Há trajetos que escolho percorrer todos os dias. Alguns se impõem à minha frente. Quase todos são escolhas que fiz. Não posso reclamar da vida se não sei decidir o que pode me fazer bem.

Nunca saberei para onde estou indo. Apenas quando olhar para trás, saberei o que andei. Apesar de nunca saber com certeza onde estou. Talvez eu esteja constantemente perdida. Mas disse Clarisse Lispector: “Perder-se também é caminho”. Será?

O que não posso fazer é parar de andar. Não importa se meus passos são rápidos e muito largos, como eu gostaria, ou se são curtos e lentos demais, como eu sempre acho que são. Talvez um resultado de nossa modernidade líquida, diria Bauman. Estamos sempre muito ocupados para perder algum tempo sentindo – qualquer coisa que seja.

Então percebi que o lugar em que eu chegar não vai me dizer de fato o quanto caminhei. Essa resposta eu não encontrarei na distância percorrida pelos meus pés. Mas no que eu tiver aprendido sobre mim. No que eu tiver aprendido a sentir.

E hoje, excepcionalmente hoje, por motivos que nem eu sei...

Hoje eu meu sinto feliz.

12 de out. de 2011

Carne


Antes de dilacerarem o corpo, vendeu a alma. Foi negociada em uma mesa cirúrgica, entre facas, agulhas, anestesias e revistas photoshopadas da playboy.

Reduzida a um pedaço de carne que pode apodrecer a qualquer momento, finge frescor untando-se com quilos de conservantes.

Genitalizou o sexo, trepada agora só se for como no filme pornô. Ela nem precisa gozar, contanto que gostem.

Expiou após a mutilação, extração de todos os pedaços de gordura e nervos; comum a todas as massas, mas que nessa aglutinação de nada se tornou objeto estranho. Precisava ser expelido.

Tentou se tornar um pálido reflexo de uma perfeição inexistente. E quando se olhou no espelho, não viu. Enxergou fatias de plástico, que nada diziam sobre o que ela era.

- Por que você vive, se ninguém enxerga em seu rosto, em seu corpo, o que você é, o que você foi? De tanto ninguém te enxergar, nem mesmo você se enxerga mais.

- Meus olhos apodreceram. Fazem com que eu veja o que não quero ver. Minhas mãos tocam uma pele flácida que eu não quero ter. Estou suja. Estou suja.

Viu um caldeirão gigante com látex derretido, pulou dentro. Não pôde mais se mexer, mas sustenta perfeitas – e enrijecidas – formas de borracha. Fede a silicone.

7 de out. de 2011

E é exatamente por isso que nós viramos lésbicas

*Texto enviado por um de nossos leitores

Eu não sei de onde veio inspiração para essa frase absurda. É claro que eu ou minha amiga nunca seremos lésbicas. Adoramos homens. Adoramos suas barbas, seus músculos e seus pênis (sim, no plural). Mas é inegável que aqueles chopps estavam caindo muito bem.

Mulheres que bebem sempre têm uma piada a mais, um sorriso a mais, uma jogada de cabelo a mais. Mulheres que bebem são fatais. Quando vejo um casal num restaurante nunca deixo de notar o que estão bebendo. Eu me sinto na obrigação de imaginar mentalmente porque na maioria das vezes ele bebe álcool e ela suco. E nunca imagino algo tangível. Aliás, nunca imagino algo tangível para nada.

Estávamos lá, na mesa de bar numa cena quase ridícula: ela esperando o namorado voltar de um culto religioso que preferimos não comentar ; eu ainda com raiva do meu digníssimo, que fez charminho a respeito do meu direito de passar a noite de sábado com ele, mas, depois de uns gritos no telefone, tudo se resolveu e ele estava à caminho dos meus braços. Pena que ele more do outro lado da cidade, foram intermináveis duas horas e mai esperando pelo beijo de reconciliação.

E foi nesse cenário com chopps gelados, numa noite fria que ficava ainda mais gélida com o sentimento de “somos sempre trocadas”, que começamos a conversar sobre o quanto os homens têm a sutil capacidade de nos colocar em segundo ou terceiro plano. A final do jogo de futebol é mais importe. O almoço com a mãe é muito mais importante. Terminar (no domingo) aquele relatório do trabalho é mais importante.

Até que ponto aguentamos essa falta de dedicação? Não faço ideia. Só queria que eles soubessem que tudo tem um limite. Que nós somos fortes, mas em uma semana com a TPM atacada podemos desistir de tudo e começar a colocar à frente deles a manicure, a visita à costureira, o “ir ali ao shopping trocar uma blusa”. E isso seria o fim.

Só queria que eles nos tratassem como nós os tratamos.
E é por isso, e tão somente por isso, que nós viramos lésbicas.

Por Maria de Las Tequillas.